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[ do lar I ]

Olhar para a caneca sobre a mesa, ver que por seus furos dietétricos se esvaem as calorias de verões idos; aspirar o olor que, lá do berço, anuncia sem dizer nada, pois, por enquanto, todo o anseio de seu emissor é um peito e toda sua linguagem é um descompassado alternar entre lágrima e sorriso; olhar para a grama que, lá no pátio sitiado por cercas-vivas, tenta superar sua sina de ter evoluído para ser pisada, e lembrar que não joga futebol há anos por causa do joelho que dói, e por isso engordou tanto, e por isso faz dieta; mirar um corpo fresco que passa na rua, memória dura, como pouco há no próprio corpo; afastar do prato a folha, atrair o lipídeo, o queimado, com prazer e culpa; eis a existência, eis o refúgio onde a saliva habita.

By Sandro Brincher

Eu sou aquele que, de fones nos ouvidos, através da janela empoeirada do ônibus, perscruta os paralelepípedos irregulares da calçada de um parque à procura de alguém que tenha, ao resgatar do fundo das algibeiras um maço de cigarros molhados pela chuva que acaba de dar trégua, derrubado um bilhete premiado de loteria.

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