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[ cronobiológica II ]

Fila da padaria. Ela puxa uma senha, olha ao redor, certifica-se de que tudo ali está ordenado, de que aquela instância de mundo é puro sentido, e sorri. Tênis, jeans, camiseta curta de algodão: e traços que ofendem a imperfeição natural de todas as coisas, os cravos no nariz da atendente, um pelo na orelha do segurança, minha epiderme flácida que se desprende dos ossos, como se ensaiasse já sua comunhão com argilas profundas. Não se dá conta de seu pequeno exílio, de sua condição absolutamente estrangeira entre estes seres. Penso que sou percebido em meu escrutínio. “Nojento”, diz um olhar. Dói-me – bem mais que a insuportável analogia entre cabelos, neve, papéis ou açúcar – não ser mais digno de captar uma imagem. A isto chamam alguns experiência, entretanto.

By Sandro Brincher

Eu sou aquele que, de fones nos ouvidos, através da janela empoeirada do ônibus, perscruta os paralelepípedos irregulares da calçada de um parque à procura de alguém que tenha, ao resgatar do fundo das algibeiras um maço de cigarros molhados pela chuva que acaba de dar trégua, derrubado um bilhete premiado de loteria.

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