Lembro como se fosse ontem (minha memória me engana menos no dia seguinte): duas mulheres conversavam no ônibus. Uma delas pouco falava. Indicador no queixo, cenho cerrado, atentava para cada frase da outra, a Juraci (lembro da ironia do nome), que se queixava de sua vida de casada. Samanta não disse muito; foram alguns conselhos pontuais, precisos. Que aquilo não era nem homem, nem vida para Juraci. Que ela deveria tomar as rédeas de seu destino. Que a liberdade é o único valor nesta vida. E por aí vai. À saída, visivelmente tocada pelas palavras ouvidas, Juraci diz “Foi muito bom conversar contigo. Como é mesmo teu nome?”.
Posso imaginar que tenha seguido aqueles conselhos, que tenha juntado suas roupas, as melhores, as cartas da mãe, os cadernos do filho – e o próprio, eventualmente – e tenha partido, deixando o marido e a vida medíocre para trás. Posso supor que jamais tenha visto sua conselheira novamente. Espero que, tendo tomado a decisão correta, tenha encontrado algum alívio.
Sinto falta, aqui em Helsinki, de muita coisa. A caótica e deliciosa heterogeneidade dos bufês, a alegria muita da vez injustificada dos finais de semana, o mar de sotaques da ilha cosmopolita da qual tive que cortar raízes. Faltam-me aqui, muito mais que tudo, essas histórias ouvidas involuntariamente no coletivo. Arranco-as, aceitando as traições mnemônicas inerentes à função do cronista, do fundo das minhas lembranças. Entretanto, sinto que cumpro um papel importante. Lá, seria só mais um cronista. Aqui, além do branco infinito das paisagens e do frio que parece entranhar nas almas das pessoas, o silêncio do interior desses grandes veículos é tal que me faz entender o assombro que meus relatos, publicados dia sim, dia não, na língua local, causam a essas pessoas. Num ônibus, dois estranhos, completos estranhos imersos em interações efêmeras, mas marcantes. Para estes leitores, não são textos cotidianos, nem memorialísticos, nem pessoais: é literatura fantástica.
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