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Cotidiano Textos

Pequena, mas de marca

[Ontem à noite; aproximadamente 22:30; Beira-mar norte; perto da entrada do Habib’s].

Ouvi um barulho estranho e resolvi encostar o carro para ver o que era. Tão logo desci, um cidadão se aproximou. Usava uma jaqueta jeans, uma calça de moletom preta, uns tênis bem detonados e uma mochila apoiada num ombro só. Tinha dois sotaques bem familiares: oeste catarinense e bêbado.

– Boa noite, amigo. É o seguinte… Não vou mentir pra você, acabei de sair do presídio ali e tô com muita fome. Não quer me apoiar num lanche ali [apontando o Habib’s]?
– Cara, só espera eu ver se não tem nada aqui no carro e te apoio nesse lanche. Já vai te encaminhando pra lá, tá chovendo aqui.
– Sem palavras, irmão, sem palavras. A gente faz merda na vida, mas a gente paga, né? Eu paguei as minhas, mas agora eu quero sossego. Tenho família, não posso mais vacilar.
– Aham, mas só deixa eu me concentrar aqui mesmo e a gente já conversa.
– Foi mal, foi mal, já vou pra lá.

Depois de verificar que era só a borracha da porta traseira que estava meio frouxa [por isso o barulho], fui até lá. Ele me viu chegando, sorriu e mandou:

– Cara, eu já sei o que vou fazer pra te compensar. Vou te apoiar nessa jaqueta aqui, ó?

Enquanto eu dizia que não era necessário, ele repetia “mas é de marca, ó” e tentava infrutiferamente tirá-la pra me mostrar a etiqueta. Quase caiu umas duas vezes nesse processo.

– Amigo, eu não quero a tua jaqueta. Não vai me servir. É muito pequena pra mim.

O argumento foi infalível. Entrei, comprei quatro esfihas e dei a ele.

– O que é essa coisa verde aqui?
– É espinafre. Não gosta?
– Eu gosto de tudo. Mas ainda bem que você não comprou de carne. Quem sabe de onde vem essas carnes aí? Eu não como carne na rua. A da cadeia era terrível.
– Só imagino. Cara, o papo tá bom mas eu preciso ir.
– Muito obrigado mesmo, mas não querendo ser abusado, sabe o que tá me faltando só? R$ 3,15 pra pegar o ônibus e voltar pra casa. Eu moro lá no Rio Vermelho, sabe?
– Rio Vermelho?

Pensei por alguns instantes e não consegui conter meu impulso de bom samaritano.

– Se tu me promete que não vai ficar falando muito daqui até lá, te dou uma carona. É sério, tô com muita dor de cabeça, hoje foi um dia péssimo [mentira].
– Nem acredito, cara! Tu vai fazer isso por mim? Tu não é viado, não tá querendo só me levar pra grupo?
– Não, cara, não sou viado, eu moro bem perto do Red River, não me custa nada ir um pouco adiante.
– Sem palavras, irmão, sem palavras.

A viagem foi, como eu previa, prolixa. O cidadão falava sem trégua. Quase no final, que ficava a uns 2 Km da minha casa, perguntei:

– Que horas saíste… de lá?
– Ah, não sei, faz uns 3 dias já.
– 3 dias??? Entendi tu falar “ACABEI de sair do presídio”.
– Ah, mas 3 dias aqui fora pra quem ficou um ano lá dentro…
– Entendi.
– E tu, já puxou cana?
– Não exatamente. Já fui casado, e às vezes me sentia encarceirado.
– Deuzulivre, sei beeeem como é isso.
– Quando eu tinha 16 anos, os dois PMs do bairro me fizeram passar a noite na “cela” da sede deles junto com mais dois amigos. Foi até divertido.
– Mas o que vocês fizeram?
– Briga de torcida organizada. Tomei um tijolaço de raspão na cabeça, o pai de um amigo meu botou um revólver na minha cara, apedrejei um CTG onde os “inimigos” se esconderam. Foi nesse nível, a coisa.
– Mas ah, maloqueiragem! De que time? Não vai me dizer que tu é do Grêmio?
– Sim, sou gremista.
– [visivelmente emocionado] Eu sabia, só um gremista pra me quebrar um galho desses. Foi a mão de deus olhando por mim.
– Se fosse a mão de deus, teu benfeitor teria sido um argentino com duas buchinhas de pó e não um gremista ateu. Mas se tu fosse colorado, eu te ajudaria da mesma forma.
– Ah, gaudério, não me decepciona! [ambos rimos]. Ah, é ali, é ali, ó. Pode parar por aqui.

Encostei o carro. Ele sai, veio à minha janela, apertamos as mãos e ele agradeceu mais uma vez.

– Valeu, dos meus! Se algum dia você precisar de alguma coisa, já sabe onde eu moro. Qualquer coisa, mas que não dê cadeia, né?
– Fica tranquilo. Se eu precisar, apareço.

Nisso, sai a mulher dele à rua. Negra, bem alta, corpulenta, segurando uma faca numa mão e uma mandioca na outra; visivelmente furiosa. Eu teria esperado uma recepção mais amável.

– Ah, então é assim, safado? Sai pra fazer rancho e volta bêbado, sem nada na mão e de taxizinho? 3 dias depois?
– Shhhh, amor, não faz barraco, vamos entrando que eu já te explico…

A única coisa que me ocorreu foi que perdi de sair disso com pelo menos uma jaqueta. Pequena, claro, mas de marca.

By Sandro Brincher

Eu sou aquele que, de fones nos ouvidos, através da janela empoeirada do ônibus, perscruta os paralelepípedos irregulares da calçada de um parque à procura de alguém que tenha, ao resgatar do fundo das algibeiras um maço de cigarros molhados pela chuva que acaba de dar trégua, derrubado um bilhete premiado de loteria.

2 replies on “Pequena, mas de marca”

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