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Cotidiano

Heineken; redenção

Greve dos bancários. Estou há 20 minutos mofando na fila da lotérica de um shopping a fim de pagar umas contas. Com aquele Araketu maroto pipocando no fone, observo as pessoas que passam e, à revelia do que a vida incita, tento me manter animado. É o que faço o tempo todo quando estou na rua. Em casa, sem dúvidas, prefiro silêncio e introspecção. Tudo corre bem até que percebo que um cara no braço da fila oposto ao meu está me encarando. Olhar fixo, cenho cerrado, análise em curso. Faço de conta que não vi, mas ele continua olhando. A menina agarrada ao braço dele fala sem parar. Ele responde “aham”, mas nem vira o rosto. Até que chega o encontro: eu de um lado da fita, ele do outro. Toca no meu braço, tiro os fones e ele pergunta:
– Ô, camarada, tu não conhece o Bruno Bebê Gigante lá do centro? Tá sempre ali perto do Energia, por ali.
– Cara, conheço de nome. Por quê?
– Porque eu tava olhando bem pra ver se era tu mesmo a pessoa que eu lembrava. Uma vez eu tava lá com ele numa nóia fodida e bateu aquela badzona, tá ligado? Acabou o bagulho, acabou o dinheiro e eu tava com muita fome. Ele é cara dura, sempre foi, aí foi numa lanchonete dum árabe na esquina, nem tem mais aquela lanchonete, e pediu um rango pra alguém. O cara pagou 2 calzones, mas o Bruno é cara dura e pediu uma bebida também. O cara botou uma Heineken pa nóis. Mas eu não fui lá, fiquei sentado ali atrás do Correio. Dali a pouco tu passou e ele gritou pra ti “Valeu aí, camarada! Se precisar de nóis, tamo aqui”. Era tu mesmo, né?
– Sim, era eu. Era um sanduíche de falafel muito bom. Pena que fechou.
– Então, cara. Uns dias depois eu conheci minha gata aqui e ela que me tirou daquela vidinha. (Ela sorri orgulhosa e encosta a cabeça nele). Nem vi mais o Bruno, na real, mas deve tá puxando uma cana. Novas!
– Ele era da correria, né?
– Era, era. Mas eu não, eu só tava numa época ruim, tava meio perdido na vida.
– Mas agora tás bem?
– Agora sim. Agora tô com ela, né? (e beijou a cabeça da moça).
– OK, mas fiquei curioso. Por que tu me abordou assim, no meio do nada, pra falar disso?
– Ah, sei lá, desculpa incomodar, eu só lembrei que foi uma coisa legal que aconteceu comigo naquela época de merda. Desculpa mesmo. Mas aquela cerveja foi a melhor que eu tomei na vida. Hoje eu prefiro Skol, mas aquela foi a melhor.
– Que nada, cara. Não pede desculpas. Obrigado por compartilhar isso. Eu nunca saberia que aquilo foi importante se tu não tivesse me falado. Obrigado mesmo. Pode não parecer, mas fiquei muito feliz.
– Posso te pagar uma ceva depois?
– Cara, não bebo há muito tempo, mas se fosse pra voltar a beber, este teria sido o dia mais propício até agora. Preciso correr daqui pra aula. Valeu mesmo.
 
Aperto a mão dele e a fila anda. Ouço ela dizer “Foi legal isso que tu fez. Fiquei emocionada. Ai, te amo“.
Troco o Araketu por um Portishead, começo a fazer a contabilidade dos meus boletos para desligar um pouco o hemisfério bobo do cérebro e chega minha vez. Nesse ínterim, rememoro algumas coisas daquele dia [por exemplo, o fato de que, depois de ganhar os comes e bebes, o Bruno Bebê Gigante, cuja participação na história conto em outro momento, tentou me vender um iPhone de procedência duvidosa] e rio. A coisa que acho realmente estranha nisso tudo é alguém preferir Skol a Heineken, mesmo sem beber há anos e sem nunca ter gostado de cerveja. O resto é só vida real.

By Sandro Brincher

Eu sou aquele que, de fones nos ouvidos, através da janela empoeirada do ônibus, perscruta os paralelepípedos irregulares da calçada de um parque à procura de alguém que tenha, ao resgatar do fundo das algibeiras um maço de cigarros molhados pela chuva que acaba de dar trégua, derrubado um bilhete premiado de loteria.

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