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Cotidiano Textos

[ in vino memoria ]

Aquele clássico: tava chegando na esquina, o bus passou. Vazio ainda por cima. Nem um minuto depois, pá, o executivo. Viagem tranquila, mesmo com a moça roncando [de leve] no banco de trás. Quando eu tava lá na frente, já na porta esperando pra descer, o motorista me olhou, riu e virou pra frente de novo. Olhei pra frente, aí me olhou de novo. Virei pra ele, que sorriu, deu uma gaguejada, mas acabou falando.
– Tu vai rir, mas tu me lembra uma pessoa… por causa da barba. O frei Francisco. Eu era coroinha lá em Lajeado, eu e meu primo. Ele era bem velho, o frei Francisco, mal andava. Deixava a gente tomar o vinho dele.
Eu só balancei a cabeça e sorri. Não sei se ele viu o sorriso, porque o meu é meio embargado por fora, mas por dentro garanto que tava gigante. Normalmente penso e interajo rápido, mas dessa vez não senti vontade, não vi necessidade, mas senti que havia muita coisa não dita. O sorriso dele ia completando essas lacunas às quais não tive acesso.
O ônibus foi parando, mas continuei esperando a conclusão. A porta se abriu, mas como só eu desceria ali, dei aquela hesitada. Ele encerrou:
– Mas olha, era um vinho bem bão! Hahahaha.
– Dá pra ver nos seus olhos! Obrigado. Boa viagem.
– Boa aula.
Tudo aconteceu muito rápido, talvez um minuto, no máximo. Um minuto é um intervalo através do qual a memória, em sua infinita capacidade de dilatar o que os ponteiros metrificam, consegue conectar cidades, nomes, vinhos e vidas com seu implacável gatilho.

By Sandro Brincher

Eu sou aquele que, de fones nos ouvidos, através da janela empoeirada do ônibus, perscruta os paralelepípedos irregulares da calçada de um parque à procura de alguém que tenha, ao resgatar do fundo das algibeiras um maço de cigarros molhados pela chuva que acaba de dar trégua, derrubado um bilhete premiado de loteria.

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