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Aquilino Ribeiro: hábitos adquiridos, hábitos recusados

Essas ladainhas chinesas, embora longe de qualquer caráter litúrgico, davam-me a sensação de adentrar um templo e eram a própria benedícite que eu mesmo não proferia.

Adquiri há não muito um hábito bastante simples do qual não abro mão nem em dias de chuva. Aliás, em dias de chuva ele é ainda mais prazeroso por não haver o sol atacando meu desprotegido couro cabeludo. Certamente tenho bonés e chapéus, mas já estão todos muito feios e velhos, mais até do que eu, de modo que prefiro preteri-los sempre que posso. Ah, quase esquecia, trata-se, o hábito, de dar uma caminhada até a biblioteca universitária após o almoço, subir ao terceiro andar, precisamente à seção de línguas estrangeiras, ir às prateleiras dos livros em Português, pegar algo ao acaso e ler por uma ou duas horas, dependendo do livro e do sono. Nos primeiros dias, em meu trajeto até lá, acompanhava com entusiasmo e curiosidade o curso do riacho que corta o campus. Não só as centenas de carpas brancas e alaranjadas que o povoam me agradavam imenso, mas também o murmúrio das estudantes sentadas nos bancos ao longo da mureta, decorando textos em voz alta para alguma prova. Essas ladainhas chinesas, embora longe de qualquer caráter litúrgico, davam-me a sensação de adentrar um templo e eram a própria benedícite que eu mesmo não proferia. Pois em uma de minhas últimas incursões peguei “O servo de deus & A casa roubada”, do Aquilino Ribeiro (1885-1963), um dos grandes escritores portugueses de todos os tempos, mas menos conhecido no Brasil do que aquela rapaziada do século XIX que insistimos em empurrar goela abaixo nos moleques de colégio. Ok, Aquilino também nasceu no tal século, no finalzinho, mas começou a publicar em 1907. Já tinha lido algumas coisas dele antes, como os romances “Andam faunos pelos bosques”, minha iniciação, e “O homem que matou o diabo”, além dos contos de “Quando ao gavião cai a pena”. Não era nenhuma novidade, portanto, a forma como ele trata a religiosidade, a crendice, a superstição, a fé e aquela parente próxima de todas essas amigas: a loucura. Em “O servo de deus”, primeira das novelas desse volume, temos a história de Bigorril, um homem que se atribui uma missão de servilidade e que busca, através do ostracismo e de uma vida miserável, o merecimento ao paraíso. A história começa quando ele, em sonho, se encontra com deus. Não há como não se divertir com o quase sadismo com o qual a divina aparição desmonta as alegações de que Bigorril estaria no caminho certo. As aventuras do heróis são fruto, claro, desse sonho e, mais especificamente, duma voadora com os dois pés no peito que ele leva de seu deus, que pode ser visualizada na imagem abaixo.

"O servo de deus & A casa roubada", do Aquilino Ribeiro (1885-1963)
“O servo de deus & A casa roubada” (1948), de Aquilino Ribeiro (1885-1963)

Uma das coisas que mais gosto no Aquilino é a mistura sempre precisa que faz de uma linguagem erudita, culta, quase roçando o empolamento, e uma língua popular, coloquial, que brota tão espontaneamente de suas personagens quanto de seus narradores. Também é essa combinação de registros diferentes, quase antagônicos, uma das coisas com as quais mais me divirto quando escrevo. Quanto a isso, encerro com uma confissão: embora não tenha sido meu primeiro mestre nessa malandragem, Aquilino Ribeiro é certamente uma das fontes das quais muitos martelinhos servi sem jamais, como bom discípulo, deixar nada ao santo.

By Sandro Brincher

Eu sou aquele que, de fones nos ouvidos, através da janela empoeirada do ônibus, perscruta os paralelepípedos irregulares da calçada de um parque à procura de alguém que tenha, ao resgatar do fundo das algibeiras um maço de cigarros molhados pela chuva que acaba de dar trégua, derrubado um bilhete premiado de loteria.

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