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Pequena, mas de marca

[Ontem à noite; aproximadamente 22:30; Beira-mar norte; perto da entrada do Habib’s].

Ouvi um barulho estranho e resolvi encostar o carro para ver o que era. Tão logo desci, um cidadão se aproximou. Usava uma jaqueta jeans, uma calça de moletom preta, uns tênis bem detonados e uma mochila apoiada num ombro só. Tinha dois sotaques bem familiares: oeste catarinense e bêbado.

– Boa noite, amigo. É o seguinte… Não vou mentir pra você, acabei de sair do presídio ali e tô com muita fome. Não quer me apoiar num lanche ali [apontando o Habib’s]?
– Cara, só espera eu ver se não tem nada aqui no carro e te apoio nesse lanche. Já vai te encaminhando pra lá, tá chovendo aqui.
– Sem palavras, irmão, sem palavras. A gente faz merda na vida, mas a gente paga, né? Eu paguei as minhas, mas agora eu quero sossego. Tenho família, não posso mais vacilar.
– Aham, mas só deixa eu me concentrar aqui mesmo e a gente já conversa.
– Foi mal, foi mal, já vou pra lá.

Depois de verificar que era só a borracha da porta traseira que estava meio frouxa [por isso o barulho], fui até lá. Ele me viu chegando, sorriu e mandou:

– Cara, eu já sei o que vou fazer pra te compensar. Vou te apoiar nessa jaqueta aqui, ó?

Enquanto eu dizia que não era necessário, ele repetia “mas é de marca, ó” e tentava infrutiferamente tirá-la pra me mostrar a etiqueta. Quase caiu umas duas vezes nesse processo.

– Amigo, eu não quero a tua jaqueta. Não vai me servir. É muito pequena pra mim.

O argumento foi infalível. Entrei, comprei quatro esfihas e dei a ele.

– O que é essa coisa verde aqui?
– É espinafre. Não gosta?
– Eu gosto de tudo. Mas ainda bem que você não comprou de carne. Quem sabe de onde vem essas carnes aí? Eu não como carne na rua. A da cadeia era terrível.
– Só imagino. Cara, o papo tá bom mas eu preciso ir.
– Muito obrigado mesmo, mas não querendo ser abusado, sabe o que tá me faltando só? R$ 3,15 pra pegar o ônibus e voltar pra casa. Eu moro lá no Rio Vermelho, sabe?
– Rio Vermelho?

Pensei por alguns instantes e não consegui conter meu impulso de bom samaritano.

– Se tu me promete que não vai ficar falando muito daqui até lá, te dou uma carona. É sério, tô com muita dor de cabeça, hoje foi um dia péssimo [mentira].
– Nem acredito, cara! Tu vai fazer isso por mim? Tu não é viado, não tá querendo só me levar pra grupo?
– Não, cara, não sou viado, eu moro bem perto do Red River, não me custa nada ir um pouco adiante.
– Sem palavras, irmão, sem palavras.

A viagem foi, como eu previa, prolixa. O cidadão falava sem trégua. Quase no final, que ficava a uns 2 Km da minha casa, perguntei:

– Que horas saíste… de lá?
– Ah, não sei, faz uns 3 dias já.
– 3 dias??? Entendi tu falar “ACABEI de sair do presídio”.
– Ah, mas 3 dias aqui fora pra quem ficou um ano lá dentro…
– Entendi.
– E tu, já puxou cana?
– Não exatamente. Já fui casado, e às vezes me sentia encarceirado.
– Deuzulivre, sei beeeem como é isso.
– Quando eu tinha 16 anos, os dois PMs do bairro me fizeram passar a noite na “cela” da sede deles junto com mais dois amigos. Foi até divertido.
– Mas o que vocês fizeram?
– Briga de torcida organizada. Tomei um tijolaço de raspão na cabeça, o pai de um amigo meu botou um revólver na minha cara, apedrejei um CTG onde os “inimigos” se esconderam. Foi nesse nível, a coisa.
– Mas ah, maloqueiragem! De que time? Não vai me dizer que tu é do Grêmio?
– Sim, sou gremista.
– [visivelmente emocionado] Eu sabia, só um gremista pra me quebrar um galho desses. Foi a mão de deus olhando por mim.
– Se fosse a mão de deus, teu benfeitor teria sido um argentino com duas buchinhas de pó e não um gremista ateu. Mas se tu fosse colorado, eu te ajudaria da mesma forma.
– Ah, gaudério, não me decepciona! [ambos rimos]. Ah, é ali, é ali, ó. Pode parar por aqui.

Encostei o carro. Ele sai, veio à minha janela, apertamos as mãos e ele agradeceu mais uma vez.

– Valeu, dos meus! Se algum dia você precisar de alguma coisa, já sabe onde eu moro. Qualquer coisa, mas que não dê cadeia, né?
– Fica tranquilo. Se eu precisar, apareço.

Nisso, sai a mulher dele à rua. Negra, bem alta, corpulenta, segurando uma faca numa mão e uma mandioca na outra; visivelmente furiosa. Eu teria esperado uma recepção mais amável.

– Ah, então é assim, safado? Sai pra fazer rancho e volta bêbado, sem nada na mão e de taxizinho? 3 dias depois?
– Shhhh, amor, não faz barraco, vamos entrando que eu já te explico…

A única coisa que me ocorreu foi que perdi de sair disso com pelo menos uma jaqueta. Pequena, claro, mas de marca.

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Física, Shakespeare e adaptações

Já era levemente estranho que, em pleno “horário do parquinho” [ou seja, hora livre para fazer o que quiser], uma turma de 4º do ensino fundamental [com idades entre 9 e 10 anos] estivesse na biblioteca em um dia ensolarado e quente. Mais estranho ainda o grupo de 4 meninas à mesa, concentradíssimas, com livros de Física do ensino médio. Isso mesmo: Física do ensino médio. Afinei a audição e comecei a perceber o que se passava.
1) Baaaaaah, olha só isso aqui: “O Sol é a fonte primária de energia que garante a existência da vida na Terra”.
2) Ah, eu já sabia disso. Pode ver que todo mundo que não pega sol fica com cara meio de morto.
3) É verdade, fica mesmo.
4) A Física explica muita coisa, né? Mas é muito difícil isso aqui.
2) Imagina tudo que a gente pode aprender até chegar nesse livro. Nem vamos mais precisar dele.
1) Verdade, mas vou continuar lendo. Eu gosto de não entender as coisas [ <3 ]
Na mesa próxima, dua outras meninas discutiam o conteúdo a ser estudado:
– Ah, mas tem que estudar sobre o Stephen Hawkings, né?
– Ih, não sei, mas esse livro aqui tem sabe o quê? S-h-a-k-e-s-p-e-a-r-e. Eu li uma tragédia dele, mas não lembro o nome. Só lembro que gostei demais.
-Mas tu sabe que isso aí não é o texto de verdade né? É uma adaptação. Esse aí tem uma linguagem mais fácil.
Houve um pequeno silêncio, enquanto a outra pensava numa resposta adequada:
– Bom, amiga, mas é o que a gente consegue por enquanto, né? Se um dia a gente vai estudar aquela Física ali e vai saber, duvido que não consiga ler o Shakespeare de verdade.
– Não é “de verdade” que se diz, Fulana, é “no original”. A gente vai ler no original.
– Ai, desculpa, pro-fes-so-ra…
E ambas saíram dali rindo.

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O melhor ano da minha vida OU História de (alg)uma(s) carona(s)

Nota: eu achei que tinha publicado esse texto no fim do ano passado, mas minha postagem programada não funcionou e só me dei conta disso agora. Aí vai, com atraso mesmo, porque 2014 mereceu.

"Hitchhiking near Vicksburg, Mississippi in 1936", fotografia de Walker Evans
“Hitchhiking near Vicksburg, Mississippi in 1936”, fotografia de Walker Evans

Segundo meu “Livro de caronas” [um caderninho no qual eu anoto algo sobre as pessoas a quem dou carona], em 2014 eu recolhi pessoas de 12 países [Argentina, Uruguay, Equador, Angola, Dinamarca, Finlândia, Alemanha, Inglaterra, Portugal, Austrália, Espanha e República Tcheca] e de 10 estados brasileiros [RS, SC, PR, SP, MG, GO, BA, AP, MS, MT]. No total, foram 76 pessoas diferentes. Entre elas, algumas eu levei mais de uma vez.

O caso mais curioso é o de um cara que mora na Fortaleza da Barra [definitivamente o grande destino dos que embarcam comigo] a quem eu já dei carona 12 vezes só neste ano. Numa quinta-feira, saindo duma reunião pedagógica, as nuvens resolveram drenar seu conteúdo e jogaram tudo aqui pra baixo. Eu tava quase sem visibilidade e um carro na contramão me fez encostar bem na calçada pra escapar da colisão, aí o farol iluminou o ponto de ônibus uns 10 metros adiante. A figura me pareceu familiar. Parei o carro no ponto e o reconheci. “E aí, véio, queres carona?”. Ele só não chorou porque não deixei.

– Poooooorra, irmão! Eu tenho a impressão de que se eu levantar as mãos pro céu e pedir ajuda em qualquer lugar, tu aparece logo em seguida!
– Esse teu deus é bem zoeiro, mandou logo um ateu, hahaha.
– Ah, ele tem seus métodos, né? hahahaha. Cara, tô bebaço, sem grana e ainda dei um topaço numa pedra antes de a chuva começar. Sentei no ponto, olhei pro chão e achei 5 reais. Não deu 1 minuto, tu apareceu. Isso não é um sinal divino?
– Olha… eu tenderia a achar que é apenas sorte pra caralho. Eu também sou um cara de muita sorte, o que é perigoso, porque me faz confiar apenas nela em alguns momentos.
– Ah, se eu dependesse da minha sorte… tava frito, irmão.
– Não é o que eu tô vendo. Quem sabe tu começa a acreditar que esse é o ano em que ela vai mudar.
– Deus te ouça, deus te ouça, mesmo tu não acreditando nele, hahahaha.
– Amém! Hahahaha.
– Se não for pedir demais, bota aquele ska maneiro que tavas ouvindo o outro dia.
– É pra já!

Coincidência ou não, este foi um ano também para mim de muitas mudanças. Nem todas foram pacíficas, benéficas ou prazerosas. Por outro lado, aconteceram tantas coisas boas, pequenas coisas, que não há como não me sentir tentado a achar que este foi o melhor ano da minha vida. Já houve tantos outros melhores anos da minha vida que eu poderia fazer uma modesta coletânea deles. O que torna este em específico muito bom, entretanto, é certamente a forma pela qual aprendi a olhar o mundo. Sentado aqui na varanda de casa, a Midi no puff ao meu lado, a bicicleta azul ali estacionada, meu violão sempre solidário com minha melancolia, as bananeiras carregadas e a chuvinha caindo de leve, não posso deixar de pensar nisso com gratidão. Não sou grato a nenhuma força superior, nenhum ser divino, nenhum esoterismo. Sou grato às coisas como elas são, sem etiquetas, sem position papers, sem teses ou dissertações. Sou intransitivamente grato. Tenho todos os motivos para isso e faço questão de materializar esse reconhecimento na escrita. E obrigado pela leitura.

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Sobre o Dia das Mulheres: digo nada

CarOs amigOs,
Ontem à tarde, depois de um dia muito trabalhoso, resolvi escrever algumas coisas a respeito do Dia da Mulher e de como não há muito pra se “comemorar” nessa data [há muito, óbvio, para se discutir e sobre o que agir]. Digitei “Mulher no Brasil” no Google e cliquei em “Imagens” buscando algum infográfico, alguma tabela, alguma coisa que ilustrasse de forma objetiva algumas coisas sobre as quais eu queria falar. O resultado foi esse aí embaixo. Aí eu fiz aquilo que de mais prático – mas intelectualmente menos corajoso – eu poderia fazer: resolvi me calar. “Quem sou eu para falar sobre isso? O que eu entendo disso? Os livros que li, as discussões acadêmicas de que participei, as situações que presenciei, isso me autoriza a dizer alguma coisa?”. Sendo assim, não vou dizer nada, absolutamente nada, sobre isso. Façam de conta que não leram nada disto aqui, que não viram esta imagem, que sim, há o que se comemorar, aí passem no shopping, peguem aquela flor que vocês vão ganhar depois de consumir X reais em compras e entreguem às mulheres que amam ou admiram. Mas só a elas, por favor. Nada de entregar às outras, as que vocês não conhecem, as que se vestem de jeito estranho, as que não se dão o valor, as que beijam outras mulheres, as que são feias, as que não se vestem com decência, as que não se depilam, as que ganham a vida com fornicação, as que não acham a maternidade a máxima realização feminina, as que apoiam o aborto (porque, como todos sabemos, quem manda no corpo delas é o Estado),as que insistem em querer invadir espaços que são dos homens por direito (divino, eu ia dizer, mas pareceria que estou ironizando…), enfim, a essas que pensam ou se comportam de forma diferente daquelas mulheres que a tua educação [imune a qualquer discriminação de gênero, credo ou etnia] entende como dignas de homenagem. Entrega a florzinha, olha bem nos olhos dela e diz “Feliz Dia das Mulheres”. Mas, veja bem, não precisa dizer que não é de todas. Só que faz isso logo porque daqui a pouco começa o futebol.
Abraço.

"Mulher no Brasil", primeiros resultados de uma pesquisa no Google Imagens
“Mulher no Brasil”, primeiros resultados de uma pesquisa no Google Imagens
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4 dias em Manaus: trechos esparsos de um relato de viagem

Em 2009, estive em Manaus para fazer o concurso para professor efetivo do curso de Letras da UFAM, campus Benjamin Constant. Considerando o objetivo, foi um investimento absolutamente mal empregado. Eu não havia estudado o suficiente e a concorrência era fortíssima. Por outro lado, conhecer a cidade foi uma bela experiência humana e geográfica. Abaixo estão transcritos alguns trechos do bloco de notas que eu usava como diário. Não me preocupei em ajustar muito o texto. Há, por exemplo, alguns saltos temporais em um mesmo dia porque eu ia anotando sem preocupação com uma linha narrativa. A coisa toda começa também meio do nada, já que ainda não encontrei as anotações dos primeiros dois dias e dos últimos, incluindo um inesperado encontro com Milton Hatoum. Se isso ocorrer, prometo atualizar o relato.

Páginas do bloco de notas usado como diário

05/maio/2009
Resolvi me aventurar no centro da cidade. Peguei um ônibus e em 20 minutos estava lá, de onde resolvi que iria até a Zona Franca. Na verdade, aquilo que eu achava que ela era dizia respeito ao Pólo Industrial: um lugar onde havia um monte de empresas, cheias de regalias fiscais, fabricando a nata da indústria nacional de eletroquaisquercoisas por preços altamente competitivos. A Zona, entretanto, é coisa bem mais simples. São algumas quadras de uma área de intensa atividade comercial no centro da cidade. Muitas lojas de eletro-eletrônicos, instrumentos musicais, videogames e roupas. O cheiro de banana frita conduzia meu olfato. Não sei se as pessoas daqui o sentem; a fraqueza do hábito pode tê-las anestesiado. É um aroma peculiar, bom, ainda melhor que a fruta que lhe dá origem. É um tipo de banana diferente dos que eu conhecia, mais firme, de sabor mais encorpado, características que se dissipam um pouco com a fritura. Caramelizada [em calda] e com leite condensado, torna-se uma respeitável bomba de calorias. Mesmo assim, minhas intensas incursões urbanas me autorizaram a consumi-la, em sua versão frita, sem remorso.

06/maio/2009
Hoje, o calor à tarde foi insuportável. Segundo os locais, não foi nada comparado ao calor de setembro, o mais quente daqui, mas foi suficiente para me causar enorme desconforto. Apesar disso, tenho a impressão de que algo do frio meridional desembarcou comigo no Eduardo Gomes. Na chegada, enquanto meus olhos se perdiam na imensidão escura do Rio Negro e, pouco antes, no incrível enrolar-se dele com o Solimões – o famoso “Encontro das águas” –, o chefe de cabine do vôo 1866, saído de Brasília às 12h15, titubeava ao dizer que a temperatura em Manaus era de 25º C. O burburinho geral na aeronave me fez entender que se tratava de algo pouco usual. Daqui a pouco entro numa oficina do Festival de Ópera. Depois escrevo sobre isso.

07/maio/2009
Neste exato instante, estou de costas para uma das laterais do Teatro Amazonas, sentado em um banquinho do amistoso largo onde, em outros bancos, muitos estudantes dão vida ao tempo. A brisa está tão agradável que tenho a impressão de que não é a mesma cidade de ontem. O Festival de Ópera não poderia ter encontrado condições climáticas mais adequadas. Desde as 17h10 alterno espera e escrita. Inscrevi-me em algumas oficinas que estão sendo ministradas no Palácio de Justiça, um belo prédio histórico – aliás, abundantes por aqui – que fica atrás do teatro. A de ontem foi com um cenógrafo paulista chamado Renato Rebouças. Confesso que, apesar de ter me impressionado muito mais com o extravagante ecletismo decorativo do palácio, onde arranjos esculturais no teto, imagino que do início do século XIX, disputavam lugar com um gigantesco condicionador de ar modelo split – um verdadeiro gozo térmico –, gostei muito do trabalho do referido senhor em uma peça chamada Arrufos, se não me falha a memória. A oficina de hoje será sobre figurino. Faltam poucos minutos, devo ir.

08/maio/2009
Meu plano principal era sair cedo para ir à feira da Eduardo Ribeiro, a rua que toca as costas do Teatro Amazonas. Dizem que se compra de tudo lá, ou seja, bem mais do que eu precisava. Queria levar alguma lembrança para os que me esperavam. Acordei às 7h30 (8h30 no horário de Brasília) e nem saí da cama. A chuva torrencial – atributo que, agora me ocorre, serve apenas a quem não é amazonense: chuva que se preze, aqui, é sempre torrencial – tamborilava na carcaça metálica do ar-condicionado. Desde a madrugada não havia parado e, segundo me disse minha anfitriã Eva, não iria parar tão cedo. Fiquei um pouco decepcionado, porque minha intenção era comprar alguma coisa para D. Terezinha, mãe da Eva, como reconhecimento pela hospitalidade. Também queria comprar algo pra Eva (é estranho que eu repita tanto o primeiro nome dela, já que ela tem seis primeiros nomes e dois sobrenomes, só que isso é assunto para outro registro), mas dado o fato de que o plano original era do conhecimento dela, isso seria a parte secreta da minha visita à feira. Ficamos em casa, conversando e deixando as horas secarem no mormaço, que não dava trégua mesmo com a chuva. Olho pelo vidro e só vejo o branco e o cinza. Há poucos minutos só havia verde, verde, verde e artérias marrons no meio. Tudo deve seguir exatamente igual sob essa alvura toda. Quando saímos em direção ao aeroporto, olhei para o céu. Era aquele azul-estúpido típico dos dias de partida. Antes de embarcar para cá, esqueci-me de olhar pra cima. Pensei nisso agora como uma lacuna no ritual. É estranho sentir que se quebra um ritual que ainda não se tem por sistemático.

Muito mais forte que a dor em meus ouvidos, causada por uma inesperada e exagerada despressurização da cabine – sentida, a julgar pela inexistência de reações adversas nos outros passageiros, apenas em mim –, foi o golpe que senti ao ter que pagar cinco reais por um copinho de café em Congonhas. Decente o café, diga-se, mas desprovido de qualquer qualidade excepcional que justificasse o exagero do ônus. Eu olhava para a fila do caixa e, enquanto bebia o melhor café que jamais havia experimentado em toda a minha existência – inventei isso na hora para me sentir melhor –, imaginava que todas aquelas pessoas, mesmo aquelas cuja ostentação era evidente, também partilhavam da minha surpresa.

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[ lição lacônica ]

empty school

Eu tava cansado, com sono (culpa do show da Strindberg no Taliesyn na noite anterior), com fome e com rinite. Cheguei ao carro e me dei conta de que tinha esquecido a bolsa na sala dos professores. Voltei querendo explodir o mundo pela minha burrice. Quatro andares escada acima. Na volta, ela me para e começa:

– Minha mãe disse que tu é uma pessoa muito espirituosa. Eu sempre mostro pra ela as coisas que tu escreve no Facebook e ela ri bastante.

Eu não sei lidar com elogios. Não tenho essa manha. Fico meio desnorteado, não sei o que responder, tendo a negar quase involuntariamente. Só consegui dizer “Ah, que ótimo. É um elogio e tanto”.
Ela ficou me olhando, sem dizer nada, como se esperasse alguma outra resposta. Perguntei se ela queria dizer mais alguma coisa. Queria sim.

– É que eu não sabia o que significava essa palavra. Olhei no dicionário, mas podia ter perguntado pra ela na hora. Fiz isso uma vez, mas ela não respondeu direito. Era como se tivesse ficado decepcionada com a pergunta. Nunca mais consegui perguntar nada depois disso.

E desabou. Chorou, chorou, chorou. Dei um abraço nela. Não aguentei e chorei junto. Sem motivo mesmo. Ou só porque estava cansado, com sono, com fome e com rinite. Ou porque tinha esquecido a bolsa. Ou porque há tempos queria um motivo pra desabar também. Não falamos mais nada. Só ficamos ali sentados por algum tempo; o tempo necessário.

Levantamos e fomos descendo. No caminho, ela disse que ia ficar por ali, precisava se recompor antes de encontrar as amigas lá na cantina.

– Obrigada, professor.
– Mas eu nem consegui dizer nada…
– Obrigada por me ouvir, então.

E eu, que tantos vocábulos uso no dia-a-dia para ajudar meus alunos a perceber o quanto podemos ser criativos – desde que tenhamos vocabulário para isso – em tudo que queremos dizer, aprendi uma inesquecível lição sobre o silêncio.

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[ minha justificativa ]

Ela segurou-a firme nas mãos, mas com alguma ternura. Olhou-a um pouco, deu dois tapinhas leves e esperou. Avermelhou levemente, foi-se avolumando, o sangue escuro preenchendo as grossas veias, que agora ficavam vistosas, ganhavam definição, como se a superfície da pele fosse um minimalista mapa hidrográfico. A enfermeira sorria. Segurava-a, alisava vagarosamente a mais grossa daquelas linhas e sorria.

– É tão bom quando é assim. Respondeu rápido. Vai penetrar com mais facilidade.

Em seguida, abandonando a ternura antes mencionada, num gesto preciso e contínuo, espetou a agulha.

Todo aquele elogio à ostentação vascular da minha mão esquerda era, afinal, um preâmbulo para o golpe sem misericórdia. Naquele momento, alguma coisa dentro de mim começava a mudar. Talvez seja esse evento, não uma explicação zodiacal, a gênese de minha ininterrupta desconfiança com relação às pessoas. Tenho tentado vencê-la quando não me sinto ameaçado e isso costuma me fazer bem.

Passei toda a tarde de ontem, por exemplo, na emergência do hospital universitário. Apesar do pinhão, das festas juninas e da elegância no vestir das pessoas, o começo do inverno sempre me traz a asma também. Os primeiros dias são terríveis, mas depois de um pequeno tratamento, tudo volta ao normal e meus alvéolos fazem seu trabalho regularmente. Ontem, portanto, foi meu começo oficial de inverno.

Uma moça, acompanhada por uma mulher mais velha, chegou à sala de medicação com o nebulizador e a seringa com um líquido transparente.

– E agora, profe?

– Agora faz o garrote e injeta o remédio, Fran.

Depois de se jubilarem com minhas veias saltadas e gordas, ela pegou aquela agulha que fica presa a uma espécie de borboletinha de plástico e posicionou-a. O dispositivo estava tão na vertical que achei que ela não ia furar a veia, mas brincar de me fazer estigmas. A professora nada disse. Respirei fundo. Ela picou. Foi fundo, voltou, procurou a veia, tentou injetar um pouco, não conseguiu, desistiu.

– Doeu, moço?

– Bastante.

– Tens que colocar a agulha quase paralela à veia, Fran. Tá muito em pé. Vamos trocar de lugar. Pega o braço direito.

Não falei nada. Não reclamei. Não tentei amenizar o evidente desconforto e nervosismo da aluna. Não fiz menção a nada do que se passava. Apenas olhava e respondia quando me perguntavam o “dói?”. Nisso, ela conseguiu acertar. Tudo ia bem. Olhei para a Fran e me ocorreu uma história.

– Tenho uma prima que é auxiliar de enfermagem também. Ela costumava treinar essas coisas no próprio corpo. Eu achava tão legal.

– Ela trabalha onde? Perguntou a profe.

– Num hospital no interior do RS, em Carazinho.

Com um misto de horror e incredulidade no olhar, ela respondeu.

– Credo! Eu jamais conseguiria!

Depois de conseguir realizar sua tarefa e embaciar seus óculos de tanta transpiração, ela olhou para mim um pouco envergonhada.

– Obrigado, Fran.

– Eu é que agradeço. Você foi muito paciente.

– Deve ser daí que vem o nome. Piada ruim, não precisa rir.

– Hahahahaha!

Antes de saírem, a professora doutora voltou.

– Também tenho asma. Corticoide é uma merda, mas vai te ajudar bastante nesse começo. São só 7 dias, depois só ano que vem. Te cuida.

– Obrigado mais uma vez.

Quando a residente me liberou, já estava escuro lá fora. Garoava fino e havia um vento gelado, mas bem suave. Fiquei um pouco na entrada vendo as pessoas que chegavam. Uma das menininhas que acompanhavam o pai com AVC parecia essa minha prima de Carazinho, a Tina. Casou cedo, teve filhos, abriu uma mercearia, engordou e morreu com o marido aos 34 anos num acidente de carro. Nunca foi à universidade. Nunca estudou enfermagem. Não podia ver sangue, por isso era o marido quem carneava o porco quando chegava o tempo. Ontem, porém, outra Tina nasceu. É auxiliar de enfermagem, treina com seringas no próprio corpo e mora no imaginário de uma professora e uma aluna. Vive, afinal, a vida que a outra não conseguiu. Foi esse o meu raciocínio para justificar aquela narrativa que tão espontaneamente surgiu em mim e que precisei libertar. Algumas histórias são como o sangue: precisam ser derramadas também fora do corpo.

veias

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O filho do Papai Noel

Joulupukki

Olhei para a tela assim que ouvi o bipe e percebi que, considerando que só havia dois atendentes, demoraria para que eu fosse atendido. Além do mais, passava um pouco da hora de fechar e eu tinha esquecido um documento no guarda-volumes, então teria que armar o ataque retórico para que me autorizassem, tão logo fosse atendido, a buscá-lo no armário lá fora, na área dos caixas eletrônicos. Num gesto automático de desconforto, respirei fundo e, enquanto soltava a respiração, passei a palma da mão vagarosamente pela barba, começando com o indicador sobre o lábio inferior e terminando na pontinha do último fio. Olhei para o lado e percebi que um menino de não mais que uns cinco anos me observava, sorria e me imitava, afagando uma barba imaginária. Sorri para ele também. Ele olhou para o outro lado e cochichou para a irmã “ele é barbudo, olha”. A irmã, apenas um pouco mais velha, mas já impregnada desse misto de decoro, polidez e moralidade de que são feitas as interações sociais com estranhos no mundo adulto, olhou para a mãe, mais ao lado, buscando aprovação para a reprimenda que acabava de dirigir ao gurizinho. Continuei sorrindo, mesmo não sendo algo que costume praticar com assiduidade. Não por rabugice, é só porque nunca gostei do meu sorriso. Ele criou coragem e me perguntou o porquê de deixá-la assim.
– Porque eu vou ser o Papai Noel quando ficar velho.
– Ah, mas a barba dele é branca, a tua é meio vermelha.
– Mas a minha camiseta é branca. Quando eu ficar velho, inverte: a roupa fica vermeha e a barba fica branquinha.
– Aí tu sai por aqui com aquele sacão cheio de presentes, né? Mas lá em casa é meu pai que compra, o Papai Noel eu só vejo no shopping.
A irmã, de repente, imbuiu-se de um senso de cumplicidade quase comovente e interveio:
– Ele é o filho do Papai Noel.
Ele me olhou de novo, mais cuidadoso, um pouco incrédulo, mas desejoso de acreditar.
– É verdade?
– Claro. Mas por enquanto, eu vivo como todo mundo. Vou à aula, ao trabalho, ao banco. Só posso ser Papai Noel depois de bem velhinho.
Ele não disse mais nada. Só se deixou ficar ali, meio boquiaberto por alguns segundos, absorto em suas reflexões, os olhos cheios daquele brilho das pequenas descobertas.
Chamaram minha senha, afinal. Apesar da ótima companhia ter aliviado a espera, minha tão nobre e rara ascendência, infelizmente, não tornou mais sólido o meu apelo ao atendente e tive que aceitar, inconsolável, a derrota da lábia frente à regra.

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Essenciais e imperdíveis

A historinha de hoje é sobre um rapaz que queria, mas não podia.

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Aproveitando a mega promoção de fim de ano da Cosac Naify, o cidadão faz aquela lista dos sonhos, só pra sentir como é ter um ZoeiraCard [sem limites]. Depois de selecionar só os “essenciais” e os “imperdíveis”, adiciona o CEP [só pra saber quanto ficaria tudo com o frete]. Olha para a cifra astronômica, para a lista mais maravilhosa da Terra [faltou só “O vermelho e o negro” (Stendhal), fora da promoção] e para o saldo bancário. Reflete um pouco sobre sociedade de consumo, ostentação bibliófila e vida simples, dá um suspiro, clica em cancelar e diz [com convicção duvidosa]:

Eu nem precisava deles mesmo.

Uma lágrima, furtiva e densa, escorre em seu rosto enquanto se dirige à estante cheia de livros ainda não lidos. É um vencedor, embora não acredite.