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Vamos marcar alguma coisa?

Aquele tumulto da geral indo sacar o FGTS hoje e eu lá, sentadinho esperando minha vez para tratar de assuntos bem menos divertidos. Dois senhores no banco ao lado conversavam.
– E a Neca, e a Neca?
– Ah, morreu já.
– E a tia Biloca, a tia Biloca?
– Ah, morreu tomém, morreu.
– Ah, tomém?
– Sim, ela e aquelazinha que morava na frente da casa dela, como era o nome daquela raparigazinha?
– A Clodete, Cordete, uma coisa assim. Essa se foi-se tomém? Mas era tão novinha!
– Novinha naquele tempo, morreu com 68.
– Mas 68 é nova. Tás com quantos?
– Vô fazê 80 mês que vem. Tu já passaste disso faz horas, né?
– Ah, já, né? Tô com 83.
– Pa tu vê. A gente se conheceu com o quê, uns 5 ou 6, não foi?
– Foi com 6 tu, que era rapaz pequeno. Eu já tinha 10.
– Teu irmão tinha 6 tomém. E ele como que tá?
– Tá bem firme.
– Ah, é?
– É, fincado bem firme no chão.
– Ah, sai daí, ô. Orra, mas logo teu irmão que era sossegado, não bebia, não fumava, nada.
– É, pa tu vê. Pegô uma doença do pormão, não quis ir no médico, ficou ruim, aí quando foi já tava todo estropiado. Não durou mais um mês.
– Ah, mas pediu então, coitado, deus o tenha.
– Pediu, pediu.

Nisso chamam a senha de um deles. Ele se levanta e se despede do amigo:

– Aparece lá em casa sábado, vamo fritá umas tainhota.
– Não posso comê mais fritura faz anos, mas apareço sim.
– Eu tomém não posso, mas agora não tô mais nem aí. Mas eu faço um pirão pa ti, tolo.
– Sábado tô lá então. Abraço, Joélio.
– Abraço, Zeno.

Pois então, sabe aquele papo de “vamos marcar alguma coisa”? Tem gente que morre e não consegue marcar nada além de bobeira.

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Cinto de castidade

Fila do supermercado. Duas adolescentes conversam sobre um rapaz, namorado de uma delas.

̶ Deixa eu te falar então, já quebrei o pau com ele ontem.
̶ Ah, já? Mas por quê?
̶ Ah, guria, entrei no Insta dele e tá, de boa, né? A última fotinho dele ̶ maravilhosa, por sinal, desculpa… ̶, cheia dos likezinho de umas guria que eu nem sei quem é. Ah, entrei no perfil de uma por uma. Tinha cinco que eram aqui das área mesmo. Ah, já me indignei.
̶ Ai, guria, mas aí já é demais, tu não acha? Como que ele vai controlar isso?
̶ Ah, querida, ele que se vire. Cinco gambevinha de olho no meu boy, que é isso? Devem ser tudo ali do Intendente, que ali só tem dessas, né?
̶ Mas perfil público é isso, amiga. Ele não tem controle, qualquer pessoa do mundo pode ver e curtir.
̶ Como assim público? Como que arruma isso?
̶ Ele tem que botar o cadeadinho que nem no Twitter. Só quem ele aceita vai ver as fotos dele.
̶ Ah, mas deixa que eu já resolvo isso agora. Vai botar cadeadinho é hoje senão já pode ir se acampando lá no Intendente com as fãzinha dele.
̶ Hahahahaha, meu deus, guria, tu é fogo mesmo, hein?
̶ Ah, eu sô mesmo, amiga. Se quer ficar comigo, é com as minhas regras, senão já vai andando que a fila tá grande!

* * *

Moral da história: use cadeadinho e não marque bobeira perto da Escola Básica Intendente José Fernandes, na Praia dos Ingleses, Florianópolis.

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Quatro frases úteis em Amárico

A companhia com a qual tenho viajado nas últimas 4 idas e vindas ao Brasil é a Ethiopian Airlines. Eu poderia elogiar algumas coisas, como o menu vegano ou o infinito profissionalismo das comissárias de bordo – além da elegância de seus trajes “típicos” e do sorriso absurdamente radiante das etíopes, que certamente estão entre as mulheres mais lindas do mundo -, mas o real motivo é que eles sempre vendem o ticket mais barato.
Apesar de ser um país de várias línguas, um dos principais idiomas etíopes é o Amárico [que tem um dos alfabetos mais lindos do mundo, por sinal]. Ora, mesmo gostando muito de estudar idiomas e tendo uma queda pelas coisas diferentonas da vida, nunca achei que saber mais do que “āmeseginalehu” [obrigado] – porque eles repetem isso mil vezes nas mensagens durante o voo – e “minimi āyidelemi” [de nada] – porque achei que era importante saber – fosse exatamente um déficit, principalmente porque todo o pessoal de bordo normalmente fala Inglês o suficiente para o serviço.
Pois na última volta à terra de Mao, em novembro, consegui ficar num assento daqueles triplos, no meio, sem ninguém ao meu lado. Lógico que virou cama. Três assentos só pra mim era tudo que eu queria desde minha primeira viagem pra cá em 2015. Dormi um sono lindo, confesso. No meio dele, entretanto, o charutão bateu no beiço, o mergulhador ameaçou abrir a escotilha, o Mr Hanky pediu pra sair. Levantei a cabeça ainda meio grogue e, com muita alegria, vi que a luz do banheiro estava verde. Quase num pulo, me lancei pelo corredor em direção à glória da resolução desse tão infame problema fisiológico humano. Que vocês não se assustem com minha súbita mudança de linguajar, mas a verdade seja dita: ninguém segura um cu que quer dar passagem tanto para fora quanto para dentro. Sobre este último caso faço apenas um exercício supositório, já que não tenho muita experiência nisso à exceção da alheia. Com relação ao primeiro, entretanto, não convém ir mais fundo. Que essas pequenas vitórias fiquem lá esquecidas nos intestinos de nossas memórias pessoais. Quase num pulo, me lancei pelo corredor, eu dizia. Pois nesse descuidado movimento acertei em cheio uma das comissárias, justamente a que mais tinha quebrado meu galho na hora do rango, e, por consequência, derrubei o copo d’água que ela trazia na mão. A moça, dotada dessa educação que só alguém acostumado a lidar com a gentalha emplumada que é 99% desse pessoal que anda de avião por aí, mandou um “I’m sorry” antes que eu pudesse dizer qualquer coisa. Ainda meio no susto, tudo que consegui dizer foi “āmeseginalehu“. Ela fez uma cara divertidíssima e respondeu quase rindo “minimi āyidelemi“. Foi aí que eu vi a idiotice e me desculpei de verdade.
— Desculpa, eu não queria dizer «Obrigado» depois de te atropelar, mas era tudo que eu sabia, hahaha.
Ela tomou ares de professora e muito pausadamente disse “ānichi k’onijo neshi“. Eu repeti sem pestanejar “ānichi k’onijo neshi“. Ela disse “de novo“. Eu, bem enfático, mandei o melhor “ānichi k’onijo neshi” que consegui. Ela fez uma cara de aprovação e disse “Muito bem, sua pronúncia está muito boa“. Era meio óbvio, mas só para garantir, perguntei se “ānichi k’onijo neshi” significava “me desculpe“. Ela deu uma risadinha marota e respondeu:
— De jeito nenhum. Isso significa «Você é bonita». Para se desculpar basta dizer “yik’irita“. Bem mais fácil, não?
Desnecessário dizer que virei fã dela, mas tive que mandar meu “Ih, quirida” e, aproveitando a luz ainda verde, correr lá pra bater aquele papo com a dona Celite, sempre presente nas horas difíceis da vida, independente dos nomes que assuma e dos alfabetos com os quais se os grafem.

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[ nesse ínterim ]

Minha primeira namoradinha morreu hoje. Talvez ela nem lembrasse mais de mim porque não fui seu primeiro e duvido muito que tenha sido um dos mais marcantes. Eu era jovem, egoísta e ilhado demais para me ocupar em deixar marcas em alguém. O velório está acontecendo a umas três quadras da minha casa, mas não gosto de velórios. Achei mais importante registrar o fato e uma frase que ela disse. “A gente não vai funcionar. Tu é uma pessoa legal, é inteligente, educado, calmíssimo, mas não tem brilho”. Passei a vida correndo atrás disso mesmo sem ter ideia do que se tratava. Um dia, uma namorada disse “O que eu mais gosto em ti é esse teu brilho no olhar. Ele está em tudo que tu faz”. Casamos e ficamos juntos até o dia em que ela morreu, há um par de anos. A primeira e a última se foram. Nada do que aconteceu nesse ínterim foi tão relevante para ser lembrado, exceto os amores – poucos, mas infinitos. O que resta agora é um álbum desbotado, uma música antiga e uma indefinida espera.

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Três semelhanças

A atendente do restaurante, já quase terminando meu prato, começa a conversa:
— Posso te perguntar uma coisa?
— Pode sim.
— Eu sou de São Luís, sabe?
— Sei, claro.
— Então, lá tem uma banda chamada Tribo de Jah.
— Que nome interessante. É banda de quê?
— De reggae. Lá tem muito reggae, mas eles são os mais famosos.
— Talvez eu tenha ouvido já. Gosto muito de reggae e ska.
— Ska eu não sei o que é, mas vou pesquisar. Escreve S, K, A?
— Isso, assim mesmo.
— Então, como vens aqui de vez em quando, toda vez que ouço tua voz, eu lembro da voz desse cara, o vocalista da Tribo de Jah. Cantas também, é?
— Canto muito, mas só no chuveiro ou em festas com som bem alto.
— Mas a tua voz é boa, devias cantar. Meu marido só me conquistou porque é bonito, gosta de música e a voz dele é muito boa. Ele me fala bom dia de manhã e eu já fico animada o resto do dia.
— Puxa, que bonito isso! A minha voz de manhã parece a do Darth Vader.
— Esse é aquele malvadão do filme lá, né?
— Sim, ele mesmo. Até que as pessoas me conheçam, eu sou um malvadão de filme em tempo integral. Mas teu marido canta?
— Ele cantando desafina muito, mas é tão bonitinho. A gente tá casado há 18 anos já.
— É uma vida.
— Sim, é a vida da minha mais velha, a Soraia. Soraia tá na Alemanha, namora com um polonês.
— Ah, a Polônia. Tem muita banda boa lá. Tem uma que tu vai gostar: VESPA. Assim mesmo, igual em Português, VESPA. É uma banda de ska. Eu tenho uma história muito boa envolvendo vespas, uma construção abandonada e meu irmão, mas se eu te contar agora vou comer macarrão frio.
— Ai, desculpa, dá aqui que eu esquento mais um pouco. Enquanto isso, tu vai contando a história.

Resumindo, esquentei esse macarrão umas 3 vezes, comi ali no balcão mesmo, contei várias histórias e conheci uma banda famosa de São Luís chamada Tribo de Jah que, segundo me disse a moça, tem vários cegos na formação, menos o vocalista, fato que me torna, junto com a voz e o gosto pelo reggae, ainda mais próximo dele.

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Nota: LÓGICO que eu conheço a Tribo de Jah há mil anos, mas não dava pra encerrar a conversa ali, né?

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Traumas de graduação I

Ah, a universidade! Tempo, para muita gente, dos primeiros porres; das primeiras sarradas; das primeiras decepções amorosas; das primeiras viagens coletivas (rodoviárias ou metafóricas); dos primeiros baseadinhos no bosque; dos primeiros tequinhos nos banheiros mais obscuros; das primeiras festinhas das quais se volta sem saber como; dos primeiros filhos que, como 99% da humanidade, não foram planejados; da primeira pedrinha encontrada no feijão do RU; do primeiro namorado(a) comunista; enfim, tempo de muitas novidades, umas boas, outras ruins, mas todas absolutamente construtivas.
Entretanto, nessa fissão que se opera entre o Ensino Superior e seu antecessor Médio, algumas das lacunas que se abrem são difíceis de se preencher. Dentro desse angustiante conjunto, uma se destaca mais do que todas: a substituição de uma palavra lúdica, festiva, congregadora, por outra que não faz mais do que delimitar o espaço entre dois períodos de tempo. Em outras palavras, a chaga que se abre quando passamos a usar “intervalo” em detrimento de “recreio” é do tipo para a qual, meus amigos e amigas, não há bálsamo que seja capaz de curar.

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Barbas e choques

Aluno da escola, mas não meu aluno, aproximadamente 10 anos, começa o papo:

— Tu deixa essa barba assim pra chocar as pessoas?
— Não, é só porque eu gosto mesmo.
— Só por isso?
— Só.
— Ah, que pena.

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[ um poliglota ]

Fila do caixa no Angeloni dos Ingleses. O casal à minha frente, uns 60 anos ambos, conversavam sobre a educação dos brasileiros em contraste com a dos argentinos. Disseram muitas coisas interessantes, mas que não vêm ao caso agora. Depois de atendidos, o senhor disse empolgado à moça do caixa:

– Muchas gracias. ¡Que tenga um buen fin de semana, aunque trabajando!
Ao que ela respondeu:
– Ah, muito obrigado, pra vocês também! Mas melhor trabalhando do que desempregada, né?
Ah, sí, por supuesto. ¡En eso estamos de acuerdo! Hasta pronto.
– Até mais.

É certo que a compreensão que um tinha do idioma do outro, mesmo não falando nada em língua alheia, era ótima, mas uma coisa ficou bastante clara: a cordialidade, como indica a etimologia, vem lá do centro abstrato do músculo cardíaco, e esse, meus amigos, é poliglota bagarai.

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[ in vino memoria ]

Aquele clássico: tava chegando na esquina, o bus passou. Vazio ainda por cima. Nem um minuto depois, pá, o executivo. Viagem tranquila, mesmo com a moça roncando [de leve] no banco de trás. Quando eu tava lá na frente, já na porta esperando pra descer, o motorista me olhou, riu e virou pra frente de novo. Olhei pra frente, aí me olhou de novo. Virei pra ele, que sorriu, deu uma gaguejada, mas acabou falando.
– Tu vai rir, mas tu me lembra uma pessoa… por causa da barba. O frei Francisco. Eu era coroinha lá em Lajeado, eu e meu primo. Ele era bem velho, o frei Francisco, mal andava. Deixava a gente tomar o vinho dele.
Eu só balancei a cabeça e sorri. Não sei se ele viu o sorriso, porque o meu é meio embargado por fora, mas por dentro garanto que tava gigante. Normalmente penso e interajo rápido, mas dessa vez não senti vontade, não vi necessidade, mas senti que havia muita coisa não dita. O sorriso dele ia completando essas lacunas às quais não tive acesso.
O ônibus foi parando, mas continuei esperando a conclusão. A porta se abriu, mas como só eu desceria ali, dei aquela hesitada. Ele encerrou:
– Mas olha, era um vinho bem bão! Hahahaha.
– Dá pra ver nos seus olhos! Obrigado. Boa viagem.
– Boa aula.
Tudo aconteceu muito rápido, talvez um minuto, no máximo. Um minuto é um intervalo através do qual a memória, em sua infinita capacidade de dilatar o que os ponteiros metrificam, consegue conectar cidades, nomes, vinhos e vidas com seu implacável gatilho.

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Surdos ou estrangeiros e vice-versa

Em minhas primeiras incursões no mundo da Libras, ouvi uma frase importante: “ser surdo é ser [tratado como] estrangeiro em seu próprio país“. Foi impactante porque arrancou os surdos da invisibilidade deles que havia em mim. Pois hoje, no Angeloni dos Ingleses, dois rapazes, ambos funcionários, conversavam no estacionamento. O brasileiro explicava ao argentino [depreendi da conversa sua nacionalidade], recém-chegado ao trabalho, alguns procedimentos diários. Ele falava tão alto e tão pausadamente que na hora me ocorreu uma analogia óbvia do ditado aí de cima: ser estrangeiro é ser [tratado como] surdo em qualquer país.