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J. D. Salinger e a inteligência alheia

Hoje é aniversário de J. D. Salinger [1/jan/1919 – 27/jan/2010]​, o mais capricorniano dos escritores. Foi depois de ler seu aclamado romance “O apanhador no campo de centeio” que me dei conta de que eu não era inteligente, era só um cara com meia dúzia de referências e uma boa memória para conhecimento enciclopédico. Era tão pessimista e ranzinza em relação ao mundo quanto o narrador Holden Caufield, mas me sentia meio Sally Hayes:

“Antigamente eu achava a Sally muito inteligente, mas só de burro que eu sou. Só porque ela entendia de teatro, e peças, e literatura e todo esse negócio. Quando as pessoas sabem um bocado sobre essas coisas, a gente leva um tempão para descobrir se são burras ou não. No caso da Sally eu levei anos. Com certeza teria descoberto muito antes, se nós não tivéssemos namorado tanto. O meu problema é que eu sempre acho inteligente a pequena com quem estou me esfregando no momento. Uma coisa não tem droga nenhuma a ver com a outra, mas continuo pensando assim”.

Apesar de que naquela era pré-Google tal habilidade fosse um pouco mais importante, fiquei muito triste, como qualquer adolescente melancólico e de baixa autoestima ficaria. Ao mesmo tempo, aquilo me lançou ótimas perguntas. O que fazer para ser uma pessoa inteligente? Inteligência é dom, é treino ou um pouco dos dois? É realmente importante ser inteligente? As pessoas burras [as realmente burras; não era o caso da Sally Hayes, o narrador exagera um pouco] são mesmo mais felizes?
Nunca consegui responder nenhuma delas. Aliás, rapidamente cheguei à conclusão de que essa era uma empreitada pouco recompensadora. Teve valor, claro, e foi o de me mover em direção a coisas novas, a métodos novos de aprender, mas nunca quis de verdade resolvê-las.
Hoje, ligeiramente mais autoconfiante, mas tristemente mais enciclopédico do que nunca, consigo pelo menos usar essas referências esdrúxulas e aleatórias para fins objetivos. Escrever, por exemplo. As perguntas são outras, mas igualmente insolúveis. Ainda bem.
E vocês, já tiveram essas dúvidas? Já pensaram nisso? Já se sentiram inteligentes ou burros demais em alguma situação? Contem pra mim.

The Catcher in the Rye (1951), by J. D. Salinger.
The Catcher in the Rye (1951), by J. D. Salinger.
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Niilismo para crianças (em lições simples e fáceis de entender)

Diálogo presenciado ontem entre um pai e sua filha, de uns 7 anos, numa sorveteria:

– Mas tu acha justo, filha, eu ficar assando a carne por horas e depois ter que ajudar a lavar a louça ainda?
– Mas ela também trabalhou antes de assar a carne.
– Olha, tem muita coisa de desigualdade ainda porque é uma coisa histórica. As mulheres não tinham acesso à educação, aí foram ficando sempre com os trabalhos que pagavam menos. Mas esse negócio de o homem ficar assando a carne e a mulher lavando a louça é diferente. Isso é muito mais biológico do que cultural.
– Biológico??? [ela realmente se espantou]
– Sim. É só ver o que acontece na natureza.

Nesse momento, fiquei imaginando uma esquilinha [perdoem o neologismo] lavando as nozes que compraram no Macro [na promoção] enquanto o esquilinho coloca fogo no carvão para começar o churrasquinho. Me ajudou a entender melhor a proposição do nobre papai.

– E te digo mais, filha. Todo mundo tem opiniões diferentes, mas o que é errado é a gente ser niilista com as nossas opiniões. Sabe o que é niilista?
– Não sei.
– É extremista. Não pode ser extremista, achar que só o que a gente pensa é que está certo.

Ela estava visivelmente pouco convencida pelas palavras do pai e seguiu firme em seu sorvete. Já eu, mera testemunha, fui embora meio descrente no tal “progresso nas relações de gênero” do qual se tem falado tanto, mas absolutamente firme na minha ideia niilista [ou seja, extremista] de que o certo mesmo é não fazer churrasco de jeito nenhum.
‪#‎GoVegan‬

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Pequena, mas de marca

[Ontem à noite; aproximadamente 22:30; Beira-mar norte; perto da entrada do Habib’s].

Ouvi um barulho estranho e resolvi encostar o carro para ver o que era. Tão logo desci, um cidadão se aproximou. Usava uma jaqueta jeans, uma calça de moletom preta, uns tênis bem detonados e uma mochila apoiada num ombro só. Tinha dois sotaques bem familiares: oeste catarinense e bêbado.

– Boa noite, amigo. É o seguinte… Não vou mentir pra você, acabei de sair do presídio ali e tô com muita fome. Não quer me apoiar num lanche ali [apontando o Habib’s]?
– Cara, só espera eu ver se não tem nada aqui no carro e te apoio nesse lanche. Já vai te encaminhando pra lá, tá chovendo aqui.
– Sem palavras, irmão, sem palavras. A gente faz merda na vida, mas a gente paga, né? Eu paguei as minhas, mas agora eu quero sossego. Tenho família, não posso mais vacilar.
– Aham, mas só deixa eu me concentrar aqui mesmo e a gente já conversa.
– Foi mal, foi mal, já vou pra lá.

Depois de verificar que era só a borracha da porta traseira que estava meio frouxa [por isso o barulho], fui até lá. Ele me viu chegando, sorriu e mandou:

– Cara, eu já sei o que vou fazer pra te compensar. Vou te apoiar nessa jaqueta aqui, ó?

Enquanto eu dizia que não era necessário, ele repetia “mas é de marca, ó” e tentava infrutiferamente tirá-la pra me mostrar a etiqueta. Quase caiu umas duas vezes nesse processo.

– Amigo, eu não quero a tua jaqueta. Não vai me servir. É muito pequena pra mim.

O argumento foi infalível. Entrei, comprei quatro esfihas e dei a ele.

– O que é essa coisa verde aqui?
– É espinafre. Não gosta?
– Eu gosto de tudo. Mas ainda bem que você não comprou de carne. Quem sabe de onde vem essas carnes aí? Eu não como carne na rua. A da cadeia era terrível.
– Só imagino. Cara, o papo tá bom mas eu preciso ir.
– Muito obrigado mesmo, mas não querendo ser abusado, sabe o que tá me faltando só? R$ 3,15 pra pegar o ônibus e voltar pra casa. Eu moro lá no Rio Vermelho, sabe?
– Rio Vermelho?

Pensei por alguns instantes e não consegui conter meu impulso de bom samaritano.

– Se tu me promete que não vai ficar falando muito daqui até lá, te dou uma carona. É sério, tô com muita dor de cabeça, hoje foi um dia péssimo [mentira].
– Nem acredito, cara! Tu vai fazer isso por mim? Tu não é viado, não tá querendo só me levar pra grupo?
– Não, cara, não sou viado, eu moro bem perto do Red River, não me custa nada ir um pouco adiante.
– Sem palavras, irmão, sem palavras.

A viagem foi, como eu previa, prolixa. O cidadão falava sem trégua. Quase no final, que ficava a uns 2 Km da minha casa, perguntei:

– Que horas saíste… de lá?
– Ah, não sei, faz uns 3 dias já.
– 3 dias??? Entendi tu falar “ACABEI de sair do presídio”.
– Ah, mas 3 dias aqui fora pra quem ficou um ano lá dentro…
– Entendi.
– E tu, já puxou cana?
– Não exatamente. Já fui casado, e às vezes me sentia encarceirado.
– Deuzulivre, sei beeeem como é isso.
– Quando eu tinha 16 anos, os dois PMs do bairro me fizeram passar a noite na “cela” da sede deles junto com mais dois amigos. Foi até divertido.
– Mas o que vocês fizeram?
– Briga de torcida organizada. Tomei um tijolaço de raspão na cabeça, o pai de um amigo meu botou um revólver na minha cara, apedrejei um CTG onde os “inimigos” se esconderam. Foi nesse nível, a coisa.
– Mas ah, maloqueiragem! De que time? Não vai me dizer que tu é do Grêmio?
– Sim, sou gremista.
– [visivelmente emocionado] Eu sabia, só um gremista pra me quebrar um galho desses. Foi a mão de deus olhando por mim.
– Se fosse a mão de deus, teu benfeitor teria sido um argentino com duas buchinhas de pó e não um gremista ateu. Mas se tu fosse colorado, eu te ajudaria da mesma forma.
– Ah, gaudério, não me decepciona! [ambos rimos]. Ah, é ali, é ali, ó. Pode parar por aqui.

Encostei o carro. Ele sai, veio à minha janela, apertamos as mãos e ele agradeceu mais uma vez.

– Valeu, dos meus! Se algum dia você precisar de alguma coisa, já sabe onde eu moro. Qualquer coisa, mas que não dê cadeia, né?
– Fica tranquilo. Se eu precisar, apareço.

Nisso, sai a mulher dele à rua. Negra, bem alta, corpulenta, segurando uma faca numa mão e uma mandioca na outra; visivelmente furiosa. Eu teria esperado uma recepção mais amável.

– Ah, então é assim, safado? Sai pra fazer rancho e volta bêbado, sem nada na mão e de taxizinho? 3 dias depois?
– Shhhh, amor, não faz barraco, vamos entrando que eu já te explico…

A única coisa que me ocorreu foi que perdi de sair disso com pelo menos uma jaqueta. Pequena, claro, mas de marca.

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Física, Shakespeare e adaptações

Já era levemente estranho que, em pleno “horário do parquinho” [ou seja, hora livre para fazer o que quiser], uma turma de 4º do ensino fundamental [com idades entre 9 e 10 anos] estivesse na biblioteca em um dia ensolarado e quente. Mais estranho ainda o grupo de 4 meninas à mesa, concentradíssimas, com livros de Física do ensino médio. Isso mesmo: Física do ensino médio. Afinei a audição e comecei a perceber o que se passava.
1) Baaaaaah, olha só isso aqui: “O Sol é a fonte primária de energia que garante a existência da vida na Terra”.
2) Ah, eu já sabia disso. Pode ver que todo mundo que não pega sol fica com cara meio de morto.
3) É verdade, fica mesmo.
4) A Física explica muita coisa, né? Mas é muito difícil isso aqui.
2) Imagina tudo que a gente pode aprender até chegar nesse livro. Nem vamos mais precisar dele.
1) Verdade, mas vou continuar lendo. Eu gosto de não entender as coisas [ <3 ]
Na mesa próxima, dua outras meninas discutiam o conteúdo a ser estudado:
– Ah, mas tem que estudar sobre o Stephen Hawkings, né?
– Ih, não sei, mas esse livro aqui tem sabe o quê? S-h-a-k-e-s-p-e-a-r-e. Eu li uma tragédia dele, mas não lembro o nome. Só lembro que gostei demais.
-Mas tu sabe que isso aí não é o texto de verdade né? É uma adaptação. Esse aí tem uma linguagem mais fácil.
Houve um pequeno silêncio, enquanto a outra pensava numa resposta adequada:
– Bom, amiga, mas é o que a gente consegue por enquanto, né? Se um dia a gente vai estudar aquela Física ali e vai saber, duvido que não consiga ler o Shakespeare de verdade.
– Não é “de verdade” que se diz, Fulana, é “no original”. A gente vai ler no original.
– Ai, desculpa, pro-fes-so-ra…
E ambas saíram dali rindo.

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O melhor ano da minha vida OU História de (alg)uma(s) carona(s)

Nota: eu achei que tinha publicado esse texto no fim do ano passado, mas minha postagem programada não funcionou e só me dei conta disso agora. Aí vai, com atraso mesmo, porque 2014 mereceu.

"Hitchhiking near Vicksburg, Mississippi in 1936", fotografia de Walker Evans
“Hitchhiking near Vicksburg, Mississippi in 1936”, fotografia de Walker Evans

Segundo meu “Livro de caronas” [um caderninho no qual eu anoto algo sobre as pessoas a quem dou carona], em 2014 eu recolhi pessoas de 12 países [Argentina, Uruguay, Equador, Angola, Dinamarca, Finlândia, Alemanha, Inglaterra, Portugal, Austrália, Espanha e República Tcheca] e de 10 estados brasileiros [RS, SC, PR, SP, MG, GO, BA, AP, MS, MT]. No total, foram 76 pessoas diferentes. Entre elas, algumas eu levei mais de uma vez.

O caso mais curioso é o de um cara que mora na Fortaleza da Barra [definitivamente o grande destino dos que embarcam comigo] a quem eu já dei carona 12 vezes só neste ano. Numa quinta-feira, saindo duma reunião pedagógica, as nuvens resolveram drenar seu conteúdo e jogaram tudo aqui pra baixo. Eu tava quase sem visibilidade e um carro na contramão me fez encostar bem na calçada pra escapar da colisão, aí o farol iluminou o ponto de ônibus uns 10 metros adiante. A figura me pareceu familiar. Parei o carro no ponto e o reconheci. “E aí, véio, queres carona?”. Ele só não chorou porque não deixei.

– Poooooorra, irmão! Eu tenho a impressão de que se eu levantar as mãos pro céu e pedir ajuda em qualquer lugar, tu aparece logo em seguida!
– Esse teu deus é bem zoeiro, mandou logo um ateu, hahaha.
– Ah, ele tem seus métodos, né? hahahaha. Cara, tô bebaço, sem grana e ainda dei um topaço numa pedra antes de a chuva começar. Sentei no ponto, olhei pro chão e achei 5 reais. Não deu 1 minuto, tu apareceu. Isso não é um sinal divino?
– Olha… eu tenderia a achar que é apenas sorte pra caralho. Eu também sou um cara de muita sorte, o que é perigoso, porque me faz confiar apenas nela em alguns momentos.
– Ah, se eu dependesse da minha sorte… tava frito, irmão.
– Não é o que eu tô vendo. Quem sabe tu começa a acreditar que esse é o ano em que ela vai mudar.
– Deus te ouça, deus te ouça, mesmo tu não acreditando nele, hahahaha.
– Amém! Hahahaha.
– Se não for pedir demais, bota aquele ska maneiro que tavas ouvindo o outro dia.
– É pra já!

Coincidência ou não, este foi um ano também para mim de muitas mudanças. Nem todas foram pacíficas, benéficas ou prazerosas. Por outro lado, aconteceram tantas coisas boas, pequenas coisas, que não há como não me sentir tentado a achar que este foi o melhor ano da minha vida. Já houve tantos outros melhores anos da minha vida que eu poderia fazer uma modesta coletânea deles. O que torna este em específico muito bom, entretanto, é certamente a forma pela qual aprendi a olhar o mundo. Sentado aqui na varanda de casa, a Midi no puff ao meu lado, a bicicleta azul ali estacionada, meu violão sempre solidário com minha melancolia, as bananeiras carregadas e a chuvinha caindo de leve, não posso deixar de pensar nisso com gratidão. Não sou grato a nenhuma força superior, nenhum ser divino, nenhum esoterismo. Sou grato às coisas como elas são, sem etiquetas, sem position papers, sem teses ou dissertações. Sou intransitivamente grato. Tenho todos os motivos para isso e faço questão de materializar esse reconhecimento na escrita. E obrigado pela leitura.

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Sobre o Dia das Mulheres: digo nada

CarOs amigOs,
Ontem à tarde, depois de um dia muito trabalhoso, resolvi escrever algumas coisas a respeito do Dia da Mulher e de como não há muito pra se “comemorar” nessa data [há muito, óbvio, para se discutir e sobre o que agir]. Digitei “Mulher no Brasil” no Google e cliquei em “Imagens” buscando algum infográfico, alguma tabela, alguma coisa que ilustrasse de forma objetiva algumas coisas sobre as quais eu queria falar. O resultado foi esse aí embaixo. Aí eu fiz aquilo que de mais prático – mas intelectualmente menos corajoso – eu poderia fazer: resolvi me calar. “Quem sou eu para falar sobre isso? O que eu entendo disso? Os livros que li, as discussões acadêmicas de que participei, as situações que presenciei, isso me autoriza a dizer alguma coisa?”. Sendo assim, não vou dizer nada, absolutamente nada, sobre isso. Façam de conta que não leram nada disto aqui, que não viram esta imagem, que sim, há o que se comemorar, aí passem no shopping, peguem aquela flor que vocês vão ganhar depois de consumir X reais em compras e entreguem às mulheres que amam ou admiram. Mas só a elas, por favor. Nada de entregar às outras, as que vocês não conhecem, as que se vestem de jeito estranho, as que não se dão o valor, as que beijam outras mulheres, as que são feias, as que não se vestem com decência, as que não se depilam, as que ganham a vida com fornicação, as que não acham a maternidade a máxima realização feminina, as que apoiam o aborto (porque, como todos sabemos, quem manda no corpo delas é o Estado),as que insistem em querer invadir espaços que são dos homens por direito (divino, eu ia dizer, mas pareceria que estou ironizando…), enfim, a essas que pensam ou se comportam de forma diferente daquelas mulheres que a tua educação [imune a qualquer discriminação de gênero, credo ou etnia] entende como dignas de homenagem. Entrega a florzinha, olha bem nos olhos dela e diz “Feliz Dia das Mulheres”. Mas, veja bem, não precisa dizer que não é de todas. Só que faz isso logo porque daqui a pouco começa o futebol.
Abraço.

"Mulher no Brasil", primeiros resultados de uma pesquisa no Google Imagens
“Mulher no Brasil”, primeiros resultados de uma pesquisa no Google Imagens
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4 dias em Manaus: trechos esparsos de um relato de viagem

Em 2009, estive em Manaus para fazer o concurso para professor efetivo do curso de Letras da UFAM, campus Benjamin Constant. Considerando o objetivo, foi um investimento absolutamente mal empregado. Eu não havia estudado o suficiente e a concorrência era fortíssima. Por outro lado, conhecer a cidade foi uma bela experiência humana e geográfica. Abaixo estão transcritos alguns trechos do bloco de notas que eu usava como diário. Não me preocupei em ajustar muito o texto. Há, por exemplo, alguns saltos temporais em um mesmo dia porque eu ia anotando sem preocupação com uma linha narrativa. A coisa toda começa também meio do nada, já que ainda não encontrei as anotações dos primeiros dois dias e dos últimos, incluindo um inesperado encontro com Milton Hatoum. Se isso ocorrer, prometo atualizar o relato.

Páginas do bloco de notas usado como diário

05/maio/2009
Resolvi me aventurar no centro da cidade. Peguei um ônibus e em 20 minutos estava lá, de onde resolvi que iria até a Zona Franca. Na verdade, aquilo que eu achava que ela era dizia respeito ao Pólo Industrial: um lugar onde havia um monte de empresas, cheias de regalias fiscais, fabricando a nata da indústria nacional de eletroquaisquercoisas por preços altamente competitivos. A Zona, entretanto, é coisa bem mais simples. São algumas quadras de uma área de intensa atividade comercial no centro da cidade. Muitas lojas de eletro-eletrônicos, instrumentos musicais, videogames e roupas. O cheiro de banana frita conduzia meu olfato. Não sei se as pessoas daqui o sentem; a fraqueza do hábito pode tê-las anestesiado. É um aroma peculiar, bom, ainda melhor que a fruta que lhe dá origem. É um tipo de banana diferente dos que eu conhecia, mais firme, de sabor mais encorpado, características que se dissipam um pouco com a fritura. Caramelizada [em calda] e com leite condensado, torna-se uma respeitável bomba de calorias. Mesmo assim, minhas intensas incursões urbanas me autorizaram a consumi-la, em sua versão frita, sem remorso.

06/maio/2009
Hoje, o calor à tarde foi insuportável. Segundo os locais, não foi nada comparado ao calor de setembro, o mais quente daqui, mas foi suficiente para me causar enorme desconforto. Apesar disso, tenho a impressão de que algo do frio meridional desembarcou comigo no Eduardo Gomes. Na chegada, enquanto meus olhos se perdiam na imensidão escura do Rio Negro e, pouco antes, no incrível enrolar-se dele com o Solimões – o famoso “Encontro das águas” –, o chefe de cabine do vôo 1866, saído de Brasília às 12h15, titubeava ao dizer que a temperatura em Manaus era de 25º C. O burburinho geral na aeronave me fez entender que se tratava de algo pouco usual. Daqui a pouco entro numa oficina do Festival de Ópera. Depois escrevo sobre isso.

07/maio/2009
Neste exato instante, estou de costas para uma das laterais do Teatro Amazonas, sentado em um banquinho do amistoso largo onde, em outros bancos, muitos estudantes dão vida ao tempo. A brisa está tão agradável que tenho a impressão de que não é a mesma cidade de ontem. O Festival de Ópera não poderia ter encontrado condições climáticas mais adequadas. Desde as 17h10 alterno espera e escrita. Inscrevi-me em algumas oficinas que estão sendo ministradas no Palácio de Justiça, um belo prédio histórico – aliás, abundantes por aqui – que fica atrás do teatro. A de ontem foi com um cenógrafo paulista chamado Renato Rebouças. Confesso que, apesar de ter me impressionado muito mais com o extravagante ecletismo decorativo do palácio, onde arranjos esculturais no teto, imagino que do início do século XIX, disputavam lugar com um gigantesco condicionador de ar modelo split – um verdadeiro gozo térmico –, gostei muito do trabalho do referido senhor em uma peça chamada Arrufos, se não me falha a memória. A oficina de hoje será sobre figurino. Faltam poucos minutos, devo ir.

08/maio/2009
Meu plano principal era sair cedo para ir à feira da Eduardo Ribeiro, a rua que toca as costas do Teatro Amazonas. Dizem que se compra de tudo lá, ou seja, bem mais do que eu precisava. Queria levar alguma lembrança para os que me esperavam. Acordei às 7h30 (8h30 no horário de Brasília) e nem saí da cama. A chuva torrencial – atributo que, agora me ocorre, serve apenas a quem não é amazonense: chuva que se preze, aqui, é sempre torrencial – tamborilava na carcaça metálica do ar-condicionado. Desde a madrugada não havia parado e, segundo me disse minha anfitriã Eva, não iria parar tão cedo. Fiquei um pouco decepcionado, porque minha intenção era comprar alguma coisa para D. Terezinha, mãe da Eva, como reconhecimento pela hospitalidade. Também queria comprar algo pra Eva (é estranho que eu repita tanto o primeiro nome dela, já que ela tem seis primeiros nomes e dois sobrenomes, só que isso é assunto para outro registro), mas dado o fato de que o plano original era do conhecimento dela, isso seria a parte secreta da minha visita à feira. Ficamos em casa, conversando e deixando as horas secarem no mormaço, que não dava trégua mesmo com a chuva. Olho pelo vidro e só vejo o branco e o cinza. Há poucos minutos só havia verde, verde, verde e artérias marrons no meio. Tudo deve seguir exatamente igual sob essa alvura toda. Quando saímos em direção ao aeroporto, olhei para o céu. Era aquele azul-estúpido típico dos dias de partida. Antes de embarcar para cá, esqueci-me de olhar pra cima. Pensei nisso agora como uma lacuna no ritual. É estranho sentir que se quebra um ritual que ainda não se tem por sistemático.

Muito mais forte que a dor em meus ouvidos, causada por uma inesperada e exagerada despressurização da cabine – sentida, a julgar pela inexistência de reações adversas nos outros passageiros, apenas em mim –, foi o golpe que senti ao ter que pagar cinco reais por um copinho de café em Congonhas. Decente o café, diga-se, mas desprovido de qualquer qualidade excepcional que justificasse o exagero do ônus. Eu olhava para a fila do caixa e, enquanto bebia o melhor café que jamais havia experimentado em toda a minha existência – inventei isso na hora para me sentir melhor –, imaginava que todas aquelas pessoas, mesmo aquelas cuja ostentação era evidente, também partilhavam da minha surpresa.

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Roteiro para um filme iraniano

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Preciso mesmo ser iraniano pra fazer filmes iranianos? Acho péssimo isso, porque tenho muitas ideias de roteiro.

Pensei num, por exemplo, em que um menino [Ali] perde um pé do tênis da irmã Zahra, aí pede ajuda a outro [que na verdade é uma menina disfarçada] para encontrá-lo. Eles chegam a um vilarejo e encontram um gurizinho [Ahmed] que está procurando a casa de um amigo para entregar um caderno. Enquanto isso, em outro vilarejo, um menino [Nematzadeh] se dá conta, na hora de fazer o dever, que esqueceu o caderno na escola [isso, o mesmo que está sendo procurado na outra vila; altos desencontros]. Fica nervoso e resolve tomar uma água com açúcar. Mal sabia ele que o jarro onde a água era armazenada está rachado e restam apenas alguns goles. Sai em busca de alguém para consertá-lo e esquece dos deveres. Obviamente vai tomar uma camaçada de pau quando o pai chegar. No meio do caminho, encontra Jafar, um órfão que está procurando a irmã Jamal, capturada e vendida como escrava a um príncipe saudita. Jafar está acompanhado de Mehrollah, que não está procurando nada, só está brabinho porque a mãe casou com um tira [no trailer fica melhor “tira” do que policial, né?]. Depois de altas aventuras e muita confusão, os dois grupos se encontram. O moleque dono do caderno ainda está com sede, mas fica por ali mesmo para fazer os deveres. Os demais seguem em frente. No meio do caminho, param numa marcenaria para pedir informações sobre Jamal. Tanto o marceneiro quanto seu recém-chegado aprendiz, Mohammed [isso é um lance meio catártico no meu filme, porque todo mundo acha que todo mundo se chama Mohammed no Irã. Ledo engano!], são cegos. “Não vimos nada”, dizem os marceneiros. Frustrados, saem dali e encontram Youssef, um homem que está maravilhado com a vida. Ele era cego desde os 8 anos, mas fez uma operação e deu tudo certo. “Eu poderia ter visto, porque eu vejo, mas não vi”. Mais à frente, encontram Mahmad, que tenta suborná-los para dar informações. Eles o repreendem e vão embora. Um avestruz passa correndo pelo grupo, que fica sem entender nada, mas continua. Depois de mais aventuras e muito mais confusão, chegam ao alto de um monte no qual há um cara baleado e vestido de papai noel. O jovem Ali pega o par de tênis do morto, vê que é exatamente o seu número, calça-o e sai correndo lomba abaixo por entre uma floresta de oliveiras. Os meninos [incluindo a menina disfarçada] deitam no chão e ficam olhando para o céu, sem tristeza, sem arrependimentos; afinal, a vida continua. A câmera se concentra apenas no menino que corre [e passa pelo avestruz, mas isso não vai aparecer]. Fade out. Créditos.

*  *  *

Se algum dos elementos do meu roteiro para um filme iraniano te agradou, não deixa de assistir aos filmes abaixo.

  • Majid Majidi – Filhos do paraíso http://www.youtube.com/watch?v=cLKINvtbOCw
  • Majid Majidi – A cor do paraíso http://www.youtube.com/watch?v=p1J8aI9UAvY
  • Majid Majidi – Baduk www.youtube.com/watch?v=0KfOI3RUmjI
  • Majid Majidi – Pedar http://www.youtube.com/watch?v=lSjg5o2H9ac
  • Majid Majidi – Entre Luzes e Sombras
  • Majid Majidi – O canto dos pardais http://www.youtube.com/watch?v=xqRmij8swgU
  • Abas Kiarostami – Onde fica a casa do meu amigo? http://www.youtube.com/watch?v=EstZtXbcZHA
  • Abbas Kiarostami – Gozāresh
  • Abbas Kiarostami – Através das Oliveiras
  • Abbas Kiarostami – E a vida continua www.youtube.com/watch?v=HxGEPQ_jPBQ
  • Confusão na Sessão da Tarde – http://www.youtube.com/watch?v=xEGxWJqvG5A
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[ lição lacônica ]

empty school

Eu tava cansado, com sono (culpa do show da Strindberg no Taliesyn na noite anterior), com fome e com rinite. Cheguei ao carro e me dei conta de que tinha esquecido a bolsa na sala dos professores. Voltei querendo explodir o mundo pela minha burrice. Quatro andares escada acima. Na volta, ela me para e começa:

– Minha mãe disse que tu é uma pessoa muito espirituosa. Eu sempre mostro pra ela as coisas que tu escreve no Facebook e ela ri bastante.

Eu não sei lidar com elogios. Não tenho essa manha. Fico meio desnorteado, não sei o que responder, tendo a negar quase involuntariamente. Só consegui dizer “Ah, que ótimo. É um elogio e tanto”.
Ela ficou me olhando, sem dizer nada, como se esperasse alguma outra resposta. Perguntei se ela queria dizer mais alguma coisa. Queria sim.

– É que eu não sabia o que significava essa palavra. Olhei no dicionário, mas podia ter perguntado pra ela na hora. Fiz isso uma vez, mas ela não respondeu direito. Era como se tivesse ficado decepcionada com a pergunta. Nunca mais consegui perguntar nada depois disso.

E desabou. Chorou, chorou, chorou. Dei um abraço nela. Não aguentei e chorei junto. Sem motivo mesmo. Ou só porque estava cansado, com sono, com fome e com rinite. Ou porque tinha esquecido a bolsa. Ou porque há tempos queria um motivo pra desabar também. Não falamos mais nada. Só ficamos ali sentados por algum tempo; o tempo necessário.

Levantamos e fomos descendo. No caminho, ela disse que ia ficar por ali, precisava se recompor antes de encontrar as amigas lá na cantina.

– Obrigada, professor.
– Mas eu nem consegui dizer nada…
– Obrigada por me ouvir, então.

E eu, que tantos vocábulos uso no dia-a-dia para ajudar meus alunos a perceber o quanto podemos ser criativos – desde que tenhamos vocabulário para isso – em tudo que queremos dizer, aprendi uma inesquecível lição sobre o silêncio.

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[ al(i)terada ]

há sempre o sol,
o som da sorte.
a faca é fria;
a face, forte.

o corpo é cura;
o canto, corte.
amar a esmo;
o mais é morte.

no velho esvai-se
a pose, o porte;
a nau se engana,
cem nós, sem norte.