Em 2009, estive em Manaus para fazer o concurso para professor efetivo do curso de Letras da UFAM, campus Benjamin Constant. Considerando o objetivo, foi um investimento absolutamente mal empregado. Eu não havia estudado o suficiente e a concorrência era fortíssima. Por outro lado, conhecer a cidade foi uma bela experiência humana e geográfica. Abaixo estão transcritos alguns trechos do bloco de notas que eu usava como diário. Não me preocupei em ajustar muito o texto. Há, por exemplo, alguns saltos temporais em um mesmo dia porque eu ia anotando sem preocupação com uma linha narrativa. A coisa toda começa também meio do nada, já que ainda não encontrei as anotações dos primeiros dois dias e dos últimos, incluindo um inesperado encontro com Milton Hatoum. Se isso ocorrer, prometo atualizar o relato.
05/maio/2009
Resolvi me aventurar no centro da cidade. Peguei um ônibus e em 20 minutos estava lá, de onde resolvi que iria até a Zona Franca. Na verdade, aquilo que eu achava que ela era dizia respeito ao Pólo Industrial: um lugar onde havia um monte de empresas, cheias de regalias fiscais, fabricando a nata da indústria nacional de eletroquaisquercoisas por preços altamente competitivos. A Zona, entretanto, é coisa bem mais simples. São algumas quadras de uma área de intensa atividade comercial no centro da cidade. Muitas lojas de eletro-eletrônicos, instrumentos musicais, videogames e roupas. O cheiro de banana frita conduzia meu olfato. Não sei se as pessoas daqui o sentem; a fraqueza do hábito pode tê-las anestesiado. É um aroma peculiar, bom, ainda melhor que a fruta que lhe dá origem. É um tipo de banana diferente dos que eu conhecia, mais firme, de sabor mais encorpado, características que se dissipam um pouco com a fritura. Caramelizada [em calda] e com leite condensado, torna-se uma respeitável bomba de calorias. Mesmo assim, minhas intensas incursões urbanas me autorizaram a consumi-la, em sua versão frita, sem remorso.
06/maio/2009
Hoje, o calor à tarde foi insuportável. Segundo os locais, não foi nada comparado ao calor de setembro, o mais quente daqui, mas foi suficiente para me causar enorme desconforto. Apesar disso, tenho a impressão de que algo do frio meridional desembarcou comigo no Eduardo Gomes. Na chegada, enquanto meus olhos se perdiam na imensidão escura do Rio Negro e, pouco antes, no incrível enrolar-se dele com o Solimões – o famoso “Encontro das águas” –, o chefe de cabine do vôo 1866, saído de Brasília às 12h15, titubeava ao dizer que a temperatura em Manaus era de 25º C. O burburinho geral na aeronave me fez entender que se tratava de algo pouco usual. Daqui a pouco entro numa oficina do Festival de Ópera. Depois escrevo sobre isso.
07/maio/2009
Neste exato instante, estou de costas para uma das laterais do Teatro Amazonas, sentado em um banquinho do amistoso largo onde, em outros bancos, muitos estudantes dão vida ao tempo. A brisa está tão agradável que tenho a impressão de que não é a mesma cidade de ontem. O Festival de Ópera não poderia ter encontrado condições climáticas mais adequadas. Desde as 17h10 alterno espera e escrita. Inscrevi-me em algumas oficinas que estão sendo ministradas no Palácio de Justiça, um belo prédio histórico – aliás, abundantes por aqui – que fica atrás do teatro. A de ontem foi com um cenógrafo paulista chamado Renato Rebouças. Confesso que, apesar de ter me impressionado muito mais com o extravagante ecletismo decorativo do palácio, onde arranjos esculturais no teto, imagino que do início do século XIX, disputavam lugar com um gigantesco condicionador de ar modelo split – um verdadeiro gozo térmico –, gostei muito do trabalho do referido senhor em uma peça chamada Arrufos, se não me falha a memória. A oficina de hoje será sobre figurino. Faltam poucos minutos, devo ir.
08/maio/2009
Meu plano principal era sair cedo para ir à feira da Eduardo Ribeiro, a rua que toca as costas do Teatro Amazonas. Dizem que se compra de tudo lá, ou seja, bem mais do que eu precisava. Queria levar alguma lembrança para os que me esperavam. Acordei às 7h30 (8h30 no horário de Brasília) e nem saí da cama. A chuva torrencial – atributo que, agora me ocorre, serve apenas a quem não é amazonense: chuva que se preze, aqui, é sempre torrencial – tamborilava na carcaça metálica do ar-condicionado. Desde a madrugada não havia parado e, segundo me disse minha anfitriã Eva, não iria parar tão cedo. Fiquei um pouco decepcionado, porque minha intenção era comprar alguma coisa para D. Terezinha, mãe da Eva, como reconhecimento pela hospitalidade. Também queria comprar algo pra Eva (é estranho que eu repita tanto o primeiro nome dela, já que ela tem seis primeiros nomes e dois sobrenomes, só que isso é assunto para outro registro), mas dado o fato de que o plano original era do conhecimento dela, isso seria a parte secreta da minha visita à feira. Ficamos em casa, conversando e deixando as horas secarem no mormaço, que não dava trégua mesmo com a chuva. Olho pelo vidro e só vejo o branco e o cinza. Há poucos minutos só havia verde, verde, verde e artérias marrons no meio. Tudo deve seguir exatamente igual sob essa alvura toda. Quando saímos em direção ao aeroporto, olhei para o céu. Era aquele azul-estúpido típico dos dias de partida. Antes de embarcar para cá, esqueci-me de olhar pra cima. Pensei nisso agora como uma lacuna no ritual. É estranho sentir que se quebra um ritual que ainda não se tem por sistemático.
Muito mais forte que a dor em meus ouvidos, causada por uma inesperada e exagerada despressurização da cabine – sentida, a julgar pela inexistência de reações adversas nos outros passageiros, apenas em mim –, foi o golpe que senti ao ter que pagar cinco reais por um copinho de café em Congonhas. Decente o café, diga-se, mas desprovido de qualquer qualidade excepcional que justificasse o exagero do ônus. Eu olhava para a fila do caixa e, enquanto bebia o melhor café que jamais havia experimentado em toda a minha existência – inventei isso na hora para me sentir melhor –, imaginava que todas aquelas pessoas, mesmo aquelas cuja ostentação era evidente, também partilhavam da minha surpresa.